segunda-feira, 31 de março de 2008

UMA QUASE CONCLUSÃO

Meu querer
um ancião em repouso
no telhado de uma casa
em ruínas
fardo de um caminhante
insone
e ateu
na poeira de um deserto
tempestuoso.
Meu querer: um velho galeão
à deriva
na piscina de deus.

Quase sei
quem sou eu.

Ozênio Dias

SEM GRAÇA


Ser adulto não tem graça
é pipa pousada em qualquer galho
um sonho que perdeu a linha do mistério
qualquer mochila usada onde falte a alça

Ah! sei não
saber tanto não tem a menor graça
é ouvir um sim com gosto de não
é afastar-se da estação quando o trem passa

Já não há a certeza de tudo como antes
o medo permanece entre nós, o tempo passa
dar um sorriso agora é um desafio gigante

Ser adulto não tem a menor graça
é algo acromo com o brilho do diamante
é um soneto sem rima, uma pista falsa.

Ozênio Dias

sexta-feira, 28 de março de 2008

Descoberta

Embora esteja tão envolta
[ em armaduras
no riso oculto
( em vão )
pressinto o que procuras
no entanto esconde a face
e busca os desvios
da pele e com tal classe
que nascem em mim
vazios...

Veredas repentinas
o medo
o não que embaraça

e cedo
meu corpo, minhas retinas
e a vida que então
grassa.

"Existe uma paisagem interna, uma geografia da alma, cujos contornos
buscamos durante toda a nossa vida."
(Hart, Josephine. Perdas e danos. Record. P.7 )

Ozênio Dias

OLHAR EM VOLTA

Eu a espero

com um riso insípido

e o corpo envolto

em mil naufrágios.



Sereno, a espero

em cores dançando

ao sabor das horas

e das antagonias.



Punhais lançados na noite

e eles me alcançam

talvez eu ande em círculos.



Eu canto um canto elástico

e ela está à espreita,

à tarde.



Ozênio Dias

quarta-feira, 26 de março de 2008

Memória


Memória insone, labirinto interminável
perene fonte de caçadas e segredos
deusa vadia recriando o improvável
estranha ave empalhada entre os dedos

Recria-te a ti mesmo entre os detritos
tua lámina faz o instante congelado
olhar infante a buscar o infinito
farol e leme de um tempo avariado

Afasta-te de mim, oh, vigilante
deixa-me namorar o esquecimento
a dor que me habita é a minha seta

Desejo e dor, ferimentos lancinantes
na epiderme desta tarde em movimento
melhor despir-se de vazios na noite quieta.


Ozênio Dias

29.05.2003



Proscrito

Se eu morrer numa tarde repentina
celebrem o fato com vinhos e foguetes
preparem a fogueira e um banquete
e entoem canções por minha sina

À parte o meu canto dissonante
todo o restante estará comigo
minha lembrança, que sirva de abrigo
ao peregrino santo e delirante

Atirem ao vento os meus manuscritos
os meus cavalos soltem-nos no campo
doem os meus dentes à tenda dos milagres

Minha sentença é leve a um proscrito
arrebentados os grilhões do desencanto
enterrem-me ao pé do campanário.

Ozênio Dias

17.10.2003

COTIDIANO

Enquanto a cidade dorme neste inverno
e a densa névoa gris invade alcovas
entre as frestas vagas da manhã
novos caminhos, novos sonhos, terras novas

Um homem vaga por entre os arcos da sinagoga
a fustigar os corpos moribundos
dos noctívagos bêbados, vagabundos
a entoar louvores ao Deus Baco

Sua voz rouca, vacilante, ganha os campos
a aura matutina se anuncia
e a cidade se põe a bocejar

O ciclo se completa, mais um dia
a libertar suas ilusões e seus espantos
lugar comum: o homem,, o deus, o amar.

Ozênio Dias

10.12.1997

terça-feira, 25 de março de 2008

QUASE BEM-QUERER

À nós, que nos amávamos tanto
os vestígios de ontem, a face do presente
um abraço frouxo, um olhar demente
lembranças opacas em meio ao desencanto

À nós, que nos perdemos nos desvios
à nós o adeus, a solitária gare
à nós, a mim e a ti Licári
à nós a horda de eus vazios

À nós o abismo cotidiano
as certezas
as ilusões perdidas

À nós o olhar e o riso insano
a tristeza
as coisas esquecidas.


Ozênio Dias

quinta-feira, 20 de março de 2008

convite

Abraça-te a ti agora
esquece, ama, vive
a trilha, invisível
a noite não demora

O retorno, impossível
relógio ladra louco
um corpo tangível
na tempestade envolto

Teus pés vagam a esmo
na tarde flutuante
assombra, a luz dos olhos

Mergulha-te em ti mesmo
teu tempo, este instante
teu corpo, um mar de abrolhos.


(segunda versão)

Ozênio Dias

Agosto. 2004

De recifes e pecados

Quero sorver aos poucos o teu olhar demasiado fonte. Aos grandes goles eu me afogaria.
Tentei me proteger sob o vasto manto da indiferença mas esta me desnudou e ora permaneço despido no meio desta tarde que arde em contornos purpúreos a delirar e, delirante, lanço
mão do verbo; verbo,asa que me pesa e talvez me liberte e talvez me mate numa queda fugaz e
fatal.
Quero sorver aos poucos o teu corpo; oceano repleto de recifes, sargaços e pecados onde vagam eu e a minha nau, sob um céu um tanto gris e uma tripulação bastante familiar: o medo, o desejo
e a solidão.
Sorver aos poucos teus outonos, invernos, tuas estações; levemente, como um pequeno demônio levando pelas mãos as filhas diletas de Zeus pelas veredas ocultas no Olimpo.
Aos poucos, sorver as tuas diáfanas retinas, vitrais que refletem em almas transeuntes os herdeiros de uma estirpe estranha e secular.
Sorver mansamente a tua lembrança presente no meu espírito insone e cansado.
Minha sede saciada após dez milênios medidos na clepsidra dos teus mais íntimos segredos e medos e tudo o mais que herdastes da eternidade.

Ozênio Dias

19.07.06

VERSOS PAGÃOS

Teu corpo é um templo silenciado
matéria envolta num rumor cristão
quando desnudo, um campo minado
leves vestígios de uma outra estação

Tua boca quente é a metade oculta
inaudível e quieta da tarde que termina
teus olhos, arco-íris na neblina
ora é o alvo e ora a catapulta

Teus róseos seios inundam os sentidos
incendiando o tempo que renasce
dos infinitos labirintos da razão

Tua lembrança, território proibido
mulheres loucas num lago a banhar-se
síntese em chamas do esplendor pagão.


Ozênio Dias

21.10.97

quarta-feira, 19 de março de 2008

Fragmentos 2

Se me vires, nem beira
sem eira,flôr no arrebalde
Não cheira!
eu sou uma fraude.

&

Então o amor é isso,Teresa
a quinta perna da mesa
(inútil e estranho)
um troço assim meio louco
e sem tamanho.

&

Sendo amigo
tomará o meu lugar no cadafalso
sentirá o meu medo
minha dor
o meu riso cáustico
(...)
Sendo amigo
lavará os meus pés
mas não esperará de mim
nada
nada além do meu abraço cálido


Ozênio Dias

CANÇÃO NOTURNA

Esta canção noturna e infeliz
quem a ouve sabe e sente logo
o sabor acre, atroz do monólogo
da existência envolta em nuvem gris

Esta canção noturna e taõ singela
penetra os labirintos da razão
desnuda o desejo oculto em vão
do ser entricheirado numa cela

Sonhos, canções, desejos e ruínas
elementos corroídos pelo tempo
ressoando no lento trepidar das horas

Dedico-lhe esta canção desesperada
minha honra, minha morte, minha sina
breves monumentos à sua memória.


Ozênio Dias

22.09.2003

CONFISSÃO ETÍLICO-AMOROSA

Na minha corrente sanguinea
de elos etílicos
e glóbulos vermelhos
de fúria
o cadeado é um coração
enferrujado
com plaquetas rubras onde se lê :

NÃO ABRA !

Ozênio Dias

Fragmentos

No silêncio purpúreo da noite ressoam levemente sussuros moribundos.Vorazmente os espíritos noturnos devoram os noctívagos.

Choro entecortado de criança.Uivos à distância.A cidadela habitada por fantasmas taciturnos.No bosque sombrio os amantes se abraçam convulsivamente sob a claridade lunar. Nas ruínas do castelo vultos silenciosos e fugídios entre espirais azuladas.

A solidão visita a morada dos humanos.





Ozênio Dias



Agosto. 2003

ESPERA

Ante os meus olhos
corpos se agitam
num mar de abrolhos

Sob os seus dedos
o tato esconde
tantos segredos

Se o tempo é quando
e uma sombra inerte
doura a moldura
de tantos quadros

Um corpo insone
num movimento
rompe a tortura
no entanto aguardo.


Ozênio Dias

Élis

Gosto de pousar o meu pensar em ti como em um lago perdido na floresta.
Silencioso.Límpido.Uma clareira banhada pelo sol através de densa folhagem.
Gosto de lembrar-me de que vives e sentes e sonhas e despe-te no silêncio

da noite e o teu corpo cálido paira mansamente em minha memória.
Gosto de saber-te distante do sonho possível, eu, aprendiz de sonhador, caminhante de veredas inexistentes.

Rapto-te para o meu país distante e, por um momento, os arcanos do teu
coração secular se revelam.Defronte a mim uma imagem, um mosaico de desejo e dor
que se nutre do sal presente nas lágrimas do náufrago que sou.

Teu corpo repleto de silêncios me causando vertigens.Vago por entre os
muros em ruínas da minha razão em estilhaços.

Tua existência: um palco de conflitos inenarráveis, batalhas samgrentas, de
enseadas ocultas. Mãos que tateiam na penumbra em busca da chave da sala
das fontes.

A tua face pacífica reflete a beatitude dos teus ancestrais.

Mas foges
E teus passos ressoam, milenares, nas imensas pradarias da minha lembrança
e atrás de ti surgem aldeias, tragédias e lendas...


Ozênio Dias

terça-feira, 18 de março de 2008

DIAGNÓSTICO

O ato que exorciza a dor crua, cortante
é balançar com um blues endiabrado
é amar, desesperado a bailarina azul
e abraçá_la de olhos fechados
sentir seu corpo frio ou flamejante
nos lábios secos e desnorteados.

domingo, 16 de março de 2008

OLHAR EM VOLTA

Eu a espero
com um riso insípido
e o corpo envolto
em mil naufrágios

Sereno, a espero
em cores dançando
ao sabor das horas
e das antagonias

punhais lançados
e eles me alcançam
talvez eu ande em círculos

E eu canto um canto elástico
e ela está à espreita
a tarde.

Ozênio Dias

DO DESTINO

O amor contém tanta loucura
uma mãe amamentando o filho morto
um ancião soletrando as escrituras

O amor requer transbordamento
a lágrima que caindo inunda o poço
na poeira redesenha o firmamento

Nada está tão distante quanto o outro
a sombra que te habita cristalina
é a memória no baú do esquecimento

No cálice desta tarde o sofrimento
é sorvido e absorve um mar revolto
navegar neste mar é a tua sina.

ozênio dias

25.05.2003
Estranhos são os caminhos noturnos do homem. Quando eu, sonâmbulo, passava por quartos de pedra e em cada um ardia tranquila uma candeia, um candeeiro de cobre, e quando, cheio de frio, cai na cama, lá estava de novo à cabeceira a sombra negra da forasteira, e em silêncio escondi o rosto nas mãos lentas... (De profundis, Georg Trakl)